Bordello e a Poeta.



Costuma-se dizer que o espírito de Bordello vagueia na madrugada buscando (re)encontros que lhe aqueçam a alma perambulante. Foi na noite de estréia do boteco que o homenageia que algo inusitado aconteceu. A programação seguia seu trajeto desplanejado, da forma como toda noite boêmia deve ser, quando uma figura imprevista irrompeu no palco, tomando o microfone de forma peremptória como seu semblante o exigia. Cabelos revolucionados (cachos seriam reducionismo daquela cabeleira desconstruída de modo desafiador...) emolduravam um sorrisosarcástico, apesar de leve, que indicava uma senhoria quase absolutados espaços ao seu redor. O figurino equilibrado e leve que vestiasugeria horas de cuidado frente ao espelho buscando construir umacomposição que fizesse jus as suas sobrancelhas. Ah! Eram sobrancelhasfinas e arqueadas, distantes dos olhos o suficiente para permitir quea luz daquele olhar invadisse o negrume do ambiente e competisse emdesigualdade com a parca luz do ambiente, dando vida a desejosuniversais e cobiças vicerais de qualquer ser (inanimado ou não) quese atrevesse a lhe mirar.O exame atento das curvas que lhe constituíam o corpo se perdia, poruma absoluta incapacidade de o continuar, visto que cada detalheexigia esforços repetidos de lhos reter na retina e na memória. Umqueixo onipresente prenunciava a imposição de seus quereres sobre osde qualquer um que se atrevesse a lhe desafiar. Mãos deliciosamentelongas que ritmavam seu falar nos faziam imaginar a sensação de seusdedos tamborilando em nossas peles seu batuque silencioso de ummetrônomo rigoroso a perseguir sua cadência intimista de falar. Seutorso longilíneo se encerrava (ou devo dizer começava?) de formaarrebatadora em uma curva hiperbólica que, vez em quando, repousava emcadeiras invejadas, embora o tempo não fosse suficiente, pois semovimentava de maneira atrevida e permanente gerando desejos ubíquosem todos os cantos por onde seu perfume resvalava.Quando a voz semi-louca e pausada dessa mulher poeta desafiou oambiente sugerindo possibilidades presentes e quentes, foi como se oespírito do Nelson se espalhasse ao redor e a todos dominasse.Percebendo a forma como o microfone se arqueava e se deixava dominarpela proximidade da boca da poeta, não houve um só naquela sala-cadeiras, garrafas, homens ou mulheres, que não se imaginassematerializando como o mesmo para usufruir dessa proximidadesemi-roçada daqueles lábios desafiadores e quasi-abertos de onde sepodiam ver cheiros exalando em forma de névoas espiraladas quecircundavam a mulher poeta, serotonizando o ar, fulgurando calores emtodos nós.Nessa noite, o espírito do Nelson paireceu no ar por muito tempo,embriagando a tudo de forma viciada, nos tornando desde então refénsdaquela poeta, que seduziu a todos, inclusive a mim, humilde copo decachaça, que sentiu a possibilidade doce do toque de seus lábiossedentos, o roçar de sua língua áspera e voluptuosa aspirando últimasgotas que restaram em mim. Seu nome? Nem te digo, mas deixopossibilidades abertas. Afinal, tive seu melhor toque.


Texto escrito por Ernani Viana Saraiva - Prof. Dr. da Universidade Federal Fluminense Pólo Universitário de Rio das Ostras - PUROPesquisador na área de estudos organizacionais, estratégia e marketing.

Nelson Bordello: bar e espaço cultural de Belo Horizonte - http://nelsonbordello.blogspot.com/

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